Praticamente um ano após os primeiros sinais concretos da crise econômica mundial, hoje não há mais dúvidas: ela é grave e onipresente. Não se trata apenas da maior crise financeira desde a grande depressão, mas de uma desaceleração já comparável à crise do petróleo, porém em ritmo cada vez mais alarmante. Recentemente o Fundo Monetário Internacional (FMI) divulgou que o PIB mundial terá sua primeira contração em 60 anos e, segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), com a disparada do desemprego, a população com renda máxima de US$ 2,00 ao dia alcançará 1,4 bilhão em 2009. O quadro crítico, mais do que debates, requer medidas urgentes por parte de todos agentes envolvidos. É preciso alcançar logo o fim dessa espiral de medo e reanimar uma economia em choque, trazendo-a, ao menos, da UTI para o quarto do hospital.
Pelo lado do Estado brasileiro, muito além das esperadas reduções da taxa Selic e do depósito compulsório, surgem com força medidas heterodoxas de estímulo à economia, como o pacote da habitação, renúncias fiscais e um ajuste da atuação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) como bombeiro à seca do crédito. Os agentes privados, por sua vez, contabilizadas perdas e perspectivas sombrias, procederam ao tradicional corte de custos via demissões e alongamento de dívidas para, agora, refazer as contas e iniciar um planejamento estratégico ainda mais delicado, que, certamente, desaguará em fusões, aquisições, formações de joint-ventures (concentrativas ou cooperativas), desenvolvimento de centrais de produção ou portais de compra entre concorrentes. Reduzir custos é preciso e a busca de sinergias torna-se, mais do que nunca, vital para sobreviver em um mundo virado de pernas para o ar.
É justamente aqui que a atuação dos órgãos de defesa da concorrência - o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), a Secretaria de Direito Econômico (SDE) e a Secretaria Especial de Acompanhamento Econômico (Seae) - ganha em importância e responsabilidade, sob pena da aplicação da lei concorrencial - a Lei nº 8.884, de 1994 - se encontrar em descompasso com os enormes desafios que se colocam a todos na tentativa de reversão do atual quadro. Em recente entrevista, o presidente do Cade reiterou seu alerta frequente de que o Brasil não deve seguir os passos tomados por Roosevelt em 1929. Na ocasião, para promover a recuperação da produção industrial e reduzir o desemprego, o governo americano aprovou uma lei suspendendo temporariamente as normas concorrenciais vigentes. Mesmo rejeitada em 1935 pela Suprema Corte dos Estados Unidos, a lei teria estimulado a formação de cartéis e práticas anticoncorrenciais.
A mensagem revela virtude, mas, ao que parece, necessita de um importante complemento. Não há dúvidas de que qualquer medida que suspendesse a Lei nº 8.884 representaria, mesmo no contexto atual, um retrocesso institucional após quase duas décadas de evolução. À luz da aguda crise mundial é necessário, porém, ir além da cautela e transmitir uma mensagem positiva ao mercado em relação à capacidade dos órgãos concorrenciais para examinar novas e menos ortodoxas estruturas societárias ou contratuais que surjam no horizonte.
A defesa da concorrência corre o risco de se tornar estéril pregação caso o Cade, a SDE e a Seae não se apresentem aptos a calibrar a aplicação legal ao contexto atual, lançando mão de conceitos como "motivo preponderante da economia nacional" e "bem comum", previstos expressamente no artigo 54 da Lei nº 8.884, mas pouco percebidos nos últimos 20 anos e que, agora, deverão nortear a aprovação, com as devidas restrições, de grandes e complexas concentrações e arranjos horizontais ou outras formas de restrição à concorrência em benefício da sobrevivência imediata das empresas, funcionamento do mercado e manutenção de empregos.
Ademais, fechar os olhos à necessidade de uma atuação especial dos órgãos concorrenciais em tempos de crise equivaleria a tapar o sol com a peneira e ignorar o que é feito por todas as autoridades e legislações do mundo. A lei concorrencial alemã (GWB), aplicada duramente desde o pós-guerra, traz a permissão expressa para a formação de cartéis entre empresas de pequeno e médio porte para maior competitividade (mittelstandskartelle), bem como dá ao ministro da economia poder para autorizar concentrações fundamentais ao interesse da sociedade, mesmo se negadas pelo bundeskartellamt (parágrafo 42º, ministererlaubnis). Na mesma direção seguem as conhecidas aprovações das fusões Boeing/McDonnell e Exxon/Mobil pela Federal Trade Commission (FED) nos Estados Unidos e as várias decisões da Comissão Européia concedendo vultosas isenções a setores específicos em prol do fortalecimento do seu mercado comum. Quem duvida que isso ocorrerá em futuro próximo para aprovar uma série de fusões nos setores financeiro, automobilístico e muitas outras que se seguirão, estimuladas pelo Congresso e pelo Poder Executivo desses países?
Dotados de membros tecnicamente preparados, é fundamental que a defesa da concorrência no Brasil ajuste suas lupas em favor de uma atuação pragmática e engajada, que acolha e interaja com os agentes econômicos ao invés de se lançar à crítica pura. Vamos sair da crise, sim! E com a ajuda da Lei de Defesa da Concorrência, no interesse da economia nacional e do bem comum.
Carlos Francisco de Magalhães e Gabriel Nogueira Dias são advogados e sócios do escritório Magalhães, Nery e Dias - Advocacia